
“A REPRESENTATIVIDADE É IMPORTANTE PARA UMA CRIANÇA NEGRA SE RECONHECER”, DIZ PSICÓLOGA
Por Isabela Cardoso
Uma sociedade ainda com um racismo velado naturalizado, oprime de diversas formas o desenvolvimento da autoestima de uma criança negra. Por isso, é necessário compreender, antes de tudo, o ambiente familiar e escolar em que ela se relaciona.
Em entrevista ao Afroncender, a psicóloga especialista em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), Gilmara Azevedo, que trabalha com o público infantil, explicou sobre as problemáticas envolvendo a autoconfiança de uma criança negra e o reconhecimento da sua identidade racial.
Ao final da entrevista, assista um vídeo com um breve recado em que a profissional fala sobre o estímulo da autoestima.
P: Como você trabalha o desenvolvimento da autoestima de uma criança negra?
GA: Eu costumo dizer que o conhecimento nos liberta. Os racistas tem essa visão pejorativa do negro, por conta de toda uma contextualização histórica, a forma como os negros foram trazidos aqui para o Brasil. Eles vinham nos navios, muitos morriam nesse deslocamento. Um via a morte do outro e a forma como eles eram tratados, eles começaram a desenvolver um processo chamado de banzo, que hoje entendemos como depressão.
Por si só, o negro já carrega na sua veia, todo esse sofrimento e ninguém quer sofrer. Então, a criança negra já vem com esse registro histórico de sofrimento, de que negro vinha para ser escravo, e isso vai se potencializando com o que acontece no dia a dia. Quando eu recebo uma paciente para trabalhar essas questões de negritude, eu costumo muito trazer o conhecimento de quanto o negro é bom, de como eles eram essenciais para tudo o que aconteceu na época quando eles eram trazidos da África para cá.
Tem também a questão da representatividade, eu tenho cabelo encaracolado, sou negra e não via nenhum artista com cabelo igual o meu, então assim sempre alisei meu cabelo, desde muito nova. Hoje eu assumi, tem alguns anos que eu deixei cacheado. A representatividade é muito importante para uma criança negra se reconhecer, para ver pessoas de sucesso que são negras, do quanto ela é importante, ela é essencial, da forma que ela é.
P: Qual a importância da família nesse desenvolvimento e no enfrentamento das desigualdades?
GA: A aceitação da gente, como a gente é, é o ponto fundamental. Sou da linha de psicoterapia cognitiva comportamental, onde a gente entende que não é a situação que vai determinar como você se sente e a forma como você interpreta. Nós precisamos conscientizar a família de que, muitas vezes, eles potencializam o próprio racismo em casa. “Ah você não pode, ali não é lugar para você”, “não participe disso, só tem branco”, acaba fazendo com que esse racismo seja muito mais potencializado dentro de casa.
Uma vez passei por uma situação trabalhando em escola e uma criança negra estava sofrendo bullying. Algumas coleguinhas quando brigava com ela, dizia “ah sua negra”.
Nós fizemos todo um trabalho na escola, essa pendência foi sanada, mas a própria criança, quando a gente fazia um trabalho de identificar as origens das raças, sempre se caracterizava como branca.
Com relação a tudo isso, os pais vieram me procurar dizendo que a filha estava sofrendo muito, porque outras crianças estavam discriminando ela. Eu disse “pai, nós vamos fazer um trabalho robusto,quem fizer esse tipo de prática aqui na escola vai ser penalizado, mas eu percebo que vocês não aceitam a negritude dela e de vocês, o que é que tem ser negra?”. A criança precisa ter orgulho da raça dela, quando ela tem, um preconceito fica mais suavizado porque a gente se aceita.
Não estou dizendo que racismo é correto, é completamente errado. Mas se chegarem e falarem “vai sua cabelo cacheado, boca grande”, não vai me ofender porque eu sou assim, eu amo ser assim. A gente precisa primeiro trabalhar a autoestima desses pais, trabalhar toda essa questão de contextualização histórica, de quão importante eles são, para daí em diante conseguir implementar mudanças.
“NÓS PRECISAMOS CONSCIENTIZAR A FAMÍLIA DE QUE, MUITAS VEZES, ELES POTENCIALIZAM O PRÓPRIO RACISMO EM CASA”
P: A autoaceitação é mais difícil em meninas ou meninos? Ou é relativamente igual para ambos?
GA: A autoaceitação em meninos é mais aceitável, porque ele não tem as questões hormonais que uma menina tem, ele tem uma facilidade maior de se adaptar aos meios. Então, a menina já tem uma questão de vaidade, que é muito grande. A questão hormonal influencia muito na forma que essa criança vai ver a vida, é diferente. O menino consegue aceitar mais.
P: Como um âmbito familiar desestruturado afeta a criação de autoconfiança da criança negra?
GA: Se eu tenho um sistema familiar, que é completamente desestruturado, isso é muito desestruturante para uma criança negra. A probabilidade dessa criança não promover o processo de autoaceitação é muito maior, porque existe uma falta de estrutura familiar.
A gente precisa trabalhar todo esse contexto com a família, ela precisa trazer aos poucos um equilíbrio. A criança precisa se sentir pertencente nesse ambiente, precisa ter paz. Nós vamos trabalhar nessa perspectiva, eu acho interessante trabalhar uma perspectiva de uma psicoterapia familiar.
Às vezes, as pessoas estão adoecidas e não adianta você fazer um trabalho apenas com uma criança, com uma família extremamente desestruturada, sem limites, sem respeito.
P: De que forma pode ser conversado com uma criança negra, quando algum colega fala algum termo depreciativo seja pela sua pele ou cabelo?
GA: Vou trabalhar com essa criança negra o processo de autoaceitação. Porque assim, o barulho que ecoa lá fora, é o som que vem de dentro. Tem um vídeo chamado “A mosca e o Samurai”, que o samurai fica agoniado com as moscas.
Ele tentando meditar, mas fica um monte de moscas ao lado dele, atrapalhando a meditação dele. Chega um momento que o Samurai para e começa a meditar, com as moscas ali e ele para de ser influenciado pelo movimento das moscas. No final do vídeo, mostra que ele consegue meditar de tal forma, que ali as moscas se tornam borboletas e ele começa a se projetar para um lugar gostoso e depois ele volta.
O vídeo quer dizer o seguinte, quando você está em paz, as coisas do lado de fora não te incomodam. As pessoas que são racistas precisam ser punidas, mas além de tudo, é poder aceitar a forma como eu sou, me amar como eu sou. Assim as coisas de fora vão ser muito mais suaves, não vão me trazer tantos danos.
Então, é dizendo que a criança é importante, a forma como ela se constituiu como sujeito é o que importa, trazer todas as qualidades que ela tem, eu preciso fortalecer a autoestima dela. É preciso fortalecer essa questão do negro, tirar essa forma pejorativa que muitos tem. O negro foi muito importante, o negro é importante.
P: Como a falta de autoconfiança pode afetar no crescimento profissional de um jovem negro?
GA: Quando eu falo de autoconfiança eu gosto muito de falar de John Bowlby, ele traz para gente a teoria do apego. Onde ele mostra onde a vinculação desde a maternidade, é muito importante para o que nós somos hoje. Se um jovem negro não tem autoconfiança, ele não consegue se projetar profissionalmente, ele não vai conseguir almejar cargos que ele realmente mereça ter.
Porque se o jovem tem essa forma de apego, como John fala, apego inseguro, ele vai automaticamente criar uma crença de desvalor. Ele vai entender que ele não tem valor, entender que as pessoas são mais inteligentes que ele. Então a gente tem um ciclo vicioso, de pessoas com subempregos, na maior parte onde são negros.
O negro precisa entender que ele é tão poderoso quanto os outros, todos os seres humanos são capazes. O negro precisa assistir palestras motivacionais, precisa modificar internamente de que ele pode, que ele quer, que ele consegue. O mercado de trabalho é muito acirrado, segrega muito. Então a gente não pode ser bom, a gente tem que ser excelente para que as coisas funcionem.
Eu faço um trabalho muito encorpado de motivação com a pessoa negra, dos ganhos que ele teve. Porque as vezes o profissional negro, a crença de desvalor é tão forte que ele não consegue visualizar a importância que ele tem, o que ele já conquistou. Trabalhamos o movimento interno de crenças limitantes.