top of page

"A SOCIEDADE TRATA O NEGRO DE FORMA DIFERENTE"

Por Alex Torres

No último dia 13 de maio, comemorou-se exatos 132 anos desde proclamação da Lei da Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil. No entanto, se enganam aqueles que acreditam que a abolição colocou fim em todos os problemas étnico-raciais existentes no território nacional. Quase um século e meio depois, a sociedade ainda colhe os frutos podres dos mais de 300 anos de escravidão vividos ao longo da história. 

image5.jpg
ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

Para melhor exemplificar as consequências causadas pelo racismo em nossa sociedade, conversamos com Maria Angélica Calmon, de 54 anos. Em abril do ano passado, a assessora de formaturas estava caminhando com sua mãe e neta quando foi acusada, em pleno Salvador Shopping, de furtar um creme preventivo para assaduras dentro de uma farmácia. 

"O fato é que a sociedade trata o negro de forma diferente", relatou Maria Angélica Calmon em entrevista à nossa reportagem. Durante a conversa, a assessora contou de que forma ela encarou todo o ocorrido vivenciado no Salvador Shopping e ainda revelou já ter sofrido outras duas situações ocorridas com seu filho, no mesmo empreendimento comercial, confira: 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto
image6.jpg
ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Imagem

P: Após toda a situação na farmácia, como foi que a senhora encarou aquele ocorrido? 

R: O racismo é algo que, mesmo convivendo com ele diariamente, sempre achamos que não vai acontecer com a gente. Vemos as pessoas relatando mas nunca achamos que vai acontecer e, quando isso acontece, você fica paralisado em um primeiro momento, espantado, sente muita dor, é uma humilhação e não acredita que aquilo está acontecendo. 

Depois você reage, vê que é necessário para que aquilo não aconteça novamente com outras pessoas, porque é uma violência muita grande. Precisamos incentivar outras pessoas a não se calarem e prestar queixa. 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

P: Você já tinha vivenciado alguma situação parecida antes? 

R: Toda a minha infância eu convivi com esse tipo de preconceito, só não sabia que era classificado como racismo. Depois de adulta e mãe, sofri por duas vezes esse preconceito no mesmo shopping, com meu filho que tinha apenas 8 anos na época.

Na primeira vez foi no natal, várias crianças brancas estavam tirando fotos com as decorações e na vez que ele foi pra tirar também, o segurança que estava do lado, que até o momento não havia falado nada com as demais crianças, disse para ele que não podia. 

O segundo fato foi no estacionamento, ele havia esquecido o celular no carro e, quando ele voltou para buscar, uma moça veio correndo gritando 'cuidado com a bolsa'. Essas situações marcam muito a gente. 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

P: No momento da lamentável situação criada pelo funcionária da farmácia, a senhora estava acompanhada de sua neta. Você chegou a tentar explicar para ela a respeito do que aconteceu? 

R: Essa foi a nossa principal preocupação, explicar para ela o que havia acontecido. Ela estava em pânico. Tentamos de todas as formas possíveis explicar para ela, para não criar uma imagem ruim de todas as pessoas. Tentamos explicar, mas ela deu mil a zero na gente.

Apesar de ter ficado apavorada, quando fomos explicar, ela virou e disse 'vó, minha mãe já tinha me dito que sempre alguém não vai gostar da gente na escola, só não sabia que isso poderia acontecer fora da escola também. Sabia que a senhora não tinha feito nada, queria defender, mas fiquei com medo dele fazer algo mau para a gente'. 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

P: Atualmente, as novas gerações tem debatido bastante com relação as questões de auto- aceitação e representatividade. Como é para a senhora, enquanto mulher negra, perceber esses avanços? 

R: Eu digo sempre que no Brasil os avanços com as pessoas negras, são 'passos de formiguinhas'. Depois desses 132 anos de abolição, de 'supostamente livres', em muitos aspectos continuamos esperando pelos avanços das leis, dos comportamentos das pessoas, na aceitação do negro como negro. 

Vivemos em um país que além de racista, é machista. A mulher negra no Brasil é sempre descriminada, não importa a profissão que ela exerça. Ela precisa sempre provar que é competente. Travamos lutas diárias como humilhação, preconceito e violência. 

Talvez nas gerações futuras a gente possa ver maiores avanços, quando mudar as políticas públicas, quando o negro conseguir buscar representantes na política que realmente faça a diferença para nós. 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

P: De um modo geral, como você avalia a postura da nossa sociedade no tratamento com as pessoas negras no dia-a-dia? 

R: O fato é que a sociedade trata o negro de forma diferente. Não sei se por ignorância, por falta de conhecimento do assunto, mas o tratamento é diferente. Independente de condições financeiras, formação ou não. O racismo no Brasil é estrutural e histórico. 

São 300 anos de escravidão, contra 132 anos da Lei Áurea. Isso fica enraizado na sociedade. Muitos assuntos não são conversados, não são ditos abertamente. As autoridades competentes querem tratar isso como algo minimalista, sem tocar, e ainda dizem que racismo no Brasil não existe. 

Nós negros vivemos isso quase todo o dia, principalmente aquele que estão em posição de ascensão, porque incomoda a sociedade e você vê que os tratamentos em ambiente profissional, em cargos, tudo é diferente.

Se você olhar, o maior número de encarcerados são negros, o maior número de alunos de escola pública, os menores salários. Você vê a maior quantidade de mortes no Brasil, dois em cada três são negros. 

Então o tratamento é diferenciado e não tem como esconder isso. Continuamos a incomodar e sermos tratados diferentes, mas tenho esperança que lá na frente isso será diferente, vejo grupos interagindo, pessoas lutando por essa mudança e também faço minha parte em não esconder quando sofro esse tipo de preconceito. 

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

P: Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade dotada de muito preconceito, onde o racismo é algo estrutural e enraizado. Como você avaliaria a importância de uma boa orientação para as crianças, de modo que elas tenham forças para lidar com essas situações no futuro?

R: A melhor forma de fortalecer uma criança, independente de sua cor da pele, é falar sobre assuntos que geralmente são esquecidos pelos pais, como igualdade, diferença, auto- estima, violência de qualquer tipo. 

Esses assuntos quando são tratados por adultos saudáveis e sem preconceitos, fazem com que as crianças olhem os fatos com mais clareza. Elas se tornam fortes, com elevada auto-estima e reagem diante de qualquer violência que ocorra com elas. Isso faz com que criemos seres humanos melhores, livres de preconceitos e, no futuro, teremos melhores adultos na sociedade, com maior humanidade.

ENTREVISTA - MARIA ANGÉLICA CALMON: Texto

©2020 por AFROCENDER. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page